PANORAMA
QUILOMBOLA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO: TERRA, EDUCAÇÃO E CULTURA.
Alunas: Alessandra Pereira.
Camila de Souza Ferreira.
Orientador: José Maurício Arruti.
Introdução
O campo semântico em torno da palavra “quilombo” ganhou algumas variações
de sentido ao longo dos tempos, umas ruins – reunião de negros fugidos que
descumprem a lei – e outras ligadas às questões culturais – local onde se
cultua atividades próprias de um povo. Assim eram tratadas as especificidades
dos que hoje são chamados de “remanescente de quilombos”, categoria criada a
partir de inúmeras pesquisas antropológicas na década de 80. A referida categoria fora nomeada em razão da permanência de
grupos rurais negros que mantinham suas tradições, organização, posse da terra,
história oral e religiosidade próprias que se diferenciavam do movimento negro
das capitais.
Em 1988, com
o recurso do ADCT
, é
aprovado o artigo 68 que
garante a
posse da terra às comunidades tradicionais:
“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Entretanto, somente em 1992 algumas
dessas comunidades recorreram ao artigo para obterem o título de posse de suas
terras. É importante dizer que essas comunidades são consideradas, de certo
modo, parte do movimento de reforma agrária, o que as coloca em condição
diferente do movimento negro urbano. Esse raciocínio apontado pela bibliografia
determina os remanescentes de quilombos como categoria específica.
Além de demarcar o direito a terra, o artigo 68 estimula a criação de políticas
públicas específicas para a manutenção das atividades culturais nessas
comunidades. As primeiras políticas foram criadas no período de 1997 a 1999 sob a chancelaria
do Ministério da Cultura – Fundação Cultural Palmares – que trataram apenas de
realizar seminários que envolviam a temática quilombola, especialmente sobre a
verificação do número de comunidades existentes e seu processo de
reconhecimento. Em 2003, a
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) assume o compromisso de promover e defender os
interesses desses grupos, buscando ainda apoio de outros ministérios para
construção de ações integradas. No mesmo ano é aprovada a Lei 10.639 referente
à inclusão da história da África, assim como a colaboração do povo negro na
construção do Brasil e sua história no currículo escolar. A partir deste ano,
os remanescentes de quilombos tiveram, de fato, políticas públicas voltadas
para essas comunidades e articulação com os demais ministérios. Isto é, o estado
nacional tem se comprometido em realizar políticas públicas específicas para
essas comunidades com o intuito de promover e garantir seus direitos, como por
exemplo a criação do Programa Brasil Quilombola em 2004.
Em 2004, o Censo Escolar incorpora um critério de
diferenciação e identificação das escolas pertencentes às comunidades
tradicionais, classificando-as como aquelas “localizadas em áreas de
remanescentes de quilombos”. Contudo, vale lembrar que o critério adotado pelo
Censo é o de autodeclaração, em que a própria diretoria escolar é quem se diz
ser ou não quilombola. Com isso, podem existir alguns problemas que dificultam
a autenticidade dessa categoria escolar, pois dependerá do que o responsável
pela escola compreende como quilombo. Apesar dos esforços do Censo Escolar em
orientar os dirigentes sobre o termo “remanescentes de quilombos”, muitos
dirigentes escolares de Salvador, por exemplo, ainda insistiam em autodeclarar
a sua escola como pertencente à categoria. Acontece que muitos diretores eram
ligados ao movimento negro e entendiam que sua escola também deveria ser
considerada quilombola, pois estavam localizadas em uma área pobre e contar, em
sua maioria, com alunos negros.
Em contraponto, há escolas que estão localizadas em áreas
de remanescentes de quilombos, mas que não possuem em seu conteúdo pedagógico
educação diferenciada quilombola ou porque ignoram a questão ou ainda porque
não atendem somente a alunos provenientes dessas comunidades.
O projeto “Panorama
quilombola no estado do Rio de Janeiro: terra, educação e cultura” em parceria
com o projeto “Escola, memória e território quilombola na Região dos Lagos –
apoio à implementação da Lei 10639/2003 e reflexão sobre uma proposta de
educação diferenciada quilombola” desenvolvido pelo Laboratório de Antropologia
dos Processos de Formação – LAPF – buscou integrar a instituição de ensino
superior Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro à Escola Agrícola
Municipal Nilo Batista, localizada em Cabo Frio, Rio de Janeiro, que tem presença
majoritária de alunos provenientes de quatro comunidades quilombolas e está
localizada em área de remanescentes de quilombos para auxiliá-los na construção
de sua identidade escolar e do seu projeto político pedagógico. Para isso,
estudamos bibliografia adequada ao tema, realizamos pesquisa qualitativa para
conhecer a escola mais o perfil dos alunos a que ela atende, apoiamos a
formação dos professores no que se refere às questões de educação diferenciada
quilombola, assim como produzimos material que auxiliasse o corpo docente a
criar o seu de maneira a valorizar a história da comunidade em que a escola
está inserida e a história do negro no Brasil – apoio à implementação da Lei
10.639.
A Escola Agrícola
Municipal Nilo Batista está localizada nas terras da antiga Fazenda Campos
Novos, assim como algumas comunidades onde seus alunos residem. Após a abolição
da escravatura, essas terras foram divididas em sítios e nelas se organizou o
trabalho agropecuário coletivo entre ex-escravos e proprietários de terras. A
partir de 1950, o dono da fazenda vendeu suas terras, fato que obrigou as
famílias a se instalarem em outros lugares ao longo do rio Una. Essas famílias,
em 1960, foram obrigadas novamente a se mobilizarem, pois a Base Aérea Naval de
São Pedro da Aldeia ocupou a extensão de 13 milhões e 800 mil metros próximos
ao rio. Os moradores foram determinados a abandonar suas casas no mesmo dia em
que foram avisados de que a Base Aérea seria instalada naquelas terras. Assim,
ocuparam a área de restinga, onde vivem até hoje. Parte dessa área é a
comunidade de Botafogo, onde alunos e ex-alunos da escola vivem. Essa
comunidade fora escolhida para ser conhecida pela equipe de pesquisa por ter grande
número de seus jovens matriculados na escola e por estar localizada mais
próxima dela.
Veremos a seguir as
dificuldades específicas de um grupo étnico, num contexto espacial também muito
específico em que há a iniciativa de um corpo do Estado – a escola Nilo Batista
– preocupado não só com seu currículo escolar, mas também dedicada à construção
da valorização e reconhecimento da história das comunidades quilombolas do seu
entorno – Angelim / Preto Forro, Caveira, Botafogo e Rasa – onde os alunos residem,
correspondendo a 80% do total de seus discentes. As dificuldades apontadas aqui
dizem respeito à formação educacional da identidade quilombola dessa juventude,
cujo processo de identificação relaciona-se com a prematura descoberta do que é
ser quilombola; as discrepâncias sociais entre os moradores da área rural e do
litoral de Cabo Frio; a expectativa de um futuro promissor na área do trabalho
de gás e petróleo; a iniciativa da Escola Agrícola Municipal Nilo Batista em
pretender afirmar a identidade negra remanescente de quilombo, valorizando o
trabalho agrícola e a história do negro no âmbito nacional e principalmente
regional. Vale ressaltar que a concepção da escola sobre a valorização do corpo
discente e das comunidades em que ele vive está ligada também ao trabalho rural
que é vinculado ao seu currículo escolar do ensino médio integral.
Objetivos
Através de pesquisa
qualitativa, o objetivo foi colaborar com a implementação da Lei 10.639 e Lei
11.645/08 a partir da realidade da Escola Agrícola Municipal Nilo Batista, que
assiste jovens das comunidades quilombolas de Preto Forro, Rasa, Caveira e
Botafogo estimulando e promovendo o pensamento crítico sobre as questões de
etnicidade; produzir material didático específico que abordasse os temas
pertinentes à questão quilombola, à memória e ao território em que a escola
está inserida; apoiar a formação do quadro de professores e ainda produzir uma
plataforma virtual de acesso aos materiais didáticos produzidos para auxiliar
aqueles que se interessem na criação de seus próprios materiais didáticos,
ainda que seja para comunidade escolar quilombola ou qualquer outra que
pretenda ter em seu conteúdo questões relacionadas ao tema ligado à lei 10.639,
e estimular a troca de experiências entre comunidades escolares quilombolas.
Metodologia
A pesquisa organizou
questionário semiestruturado com perguntas divididas por temas: terra, educação
e cultura. Essas perguntas foram pensadas de forma que nos auxiliasse a
introduzir uma conversa informal com nossos entrevistados – alunos e ex-alunos da
Escola Agrícola Municipal Nilo Batista mais alguns moradores da comunidade
Botafogo – para que eles se sentissem à vontade para falar, abertamente, sobre
os temas a partir da sua vivência na comunidade e na escola.
Após conhecermos
a escola e a comunidade Botafogo, produzimos uma apostila a partir da leitura
da bibliografia para iniciarmos o primeiro ciclo de sensibilização do corpo
docente e discente no que diz respeito às questões de etnicidade. Essa apostila
serviu como modelo para outra utilizada no segundo ciclo com a intenção de
auxiliar a direção da escola a pensar o seu conteúdo pedagógico a partir da sua
comunidade escolar – contexto espacial, histórico e cultural das comunidades
que ela atende. Com esses materiais foram realizadas oficinas não só com a
Escola Agrícola Municipal Nilo Batista, como, a pedido do município de Cabo
Frio, estendeu-se a outras escolas quilombolas da cidade.
Por não haver
tempo hábil a realização do terceiro ciclo, que seria a criação de uma plataforma
virtual para que a Escola Agrícola Municipal Nilo Batista pudesse trocar
informações e disponibilizar os recursos utilizados na produção do seu conteúdo
pedagógico para outras instituições de ensino, foi produzido um curta-metragem
sobre a escola com depoimentos da diretora mais as imagens de todo o trabalho
realizado por este projeto de pesquisa junto a escola.
Conclusões
O grupo de
pesquisa pode conhecer e vivenciar a reflexão sobre a educação diferenciada quilombola
mais suas implicações na construção de identidades e seus reflexos na
sociedade. Podemos perceber as dificuldades da escola em manter o estudo
técnico agropecuário no ensino médio, pois seus alunos já não valorizam o
trabalho com a terra, diferentemente das gerações anteriores. Podemos constatar
isso ao entrevistarmos o membro mais velho de uma das famílias da comunidade de
Botafogo, que viveu a instabilidade de fixação naquelas terras devido sua venda
e mais tarde à Base Naval. Hoje, não há essa instabilidade, mas sim a luta da
comunidade pela titulação de suas terras como prevê o artigo 68. Segundo ele, tendo
o trabalho rural como único meio de prover o sustento de sua família, no seu
tempo, independente da idade, era obrigação dos familiares cultivarem a terra. Por
isso não teve a mesma oportunidade do neto para estudar.
Ao contrário do
avô, o aluno entrevistado tem outras perspectivas de vida além do trabalho
agropecuário, como a exploração petrolífera em Cabo Frio. Após o
descobrimento da bacia de Campos, as promessas de trabalho nesta área
aumentaram e, consequentemente, cursos técnicos relacionados a ela foram
criados na região. Entretanto, a oferta de trabalho nessa área não condiz com a
realidade da sua procura. Muitos desejam obter vaga de trabalho na empresa que
administra a exploração do petróleo na região, mas os cursos oferecidos por
algumas escolas técnicas não satisfaz a qualificação exigida por essas
empresas.
Muitos alunos e
ex-alunos da escola também não se interessam pelo trabalho rural, pois, ainda
quando pequenos, trabalharam com agropecuária sendo explorados. Disse-nos que
não tinham boas recordações desse tempo e que não pretendiam continuar
trabalhando no meio rural. Além disso, a juventude quilombola de Cabo Frio,
ainda em processo de construção de sua identidade, está ligada a uma lógica
“urbanocêntrica”. “Essa lógica desconhece as especificidades de alguns grupos
como os do campo e quilombolas, generalizando-as ao modelo urbano e
etnocêntrico. Surgem assim, as dificuldades de reconhecimento desse outro em si mesmo. O outro é conhecido
como aquele fora dos padrões aceitáveis e valorizados pela sociedade urbana,
visto como diferente e atrasado”.
Essas foram as
principais queixas dos alunos e ex-alunos da escola e que talvez justifique o
crescimento da evasão escolar no ensino médio. Vejamos os números do ano de
2010 no quadro abaixo:
Tabela 01: Distribuição por série escolar dos alunos
da Escola Agrícola Municipal Nilo Batista, Cabo Frio (RJ)
|
Ano Escolar
|
Nº de turmas
|
Nº de alunos
|
%
|
6º ANO – EF
|
5
|
154
|
29,96
|
7º ANO - EF
|
5
|
143
|
27,82
|
8º ANO - EF
|
3
|
82
|
15,95
|
9º ANO - EF
|
2
|
57
|
11,09
|
1º ANO - EM
|
2
|
49
|
9,53
|
2º ANO - EM
|
1
|
19
|
3,7
|
3º ANO - EM
|
1
|
10
|
1,95
|
TOTAL
|
19
|
514
|
100
|
Experimentamos
o processo de elaboração da estrutura de um projeto político pedagógico
diferenciado e relativamente novo dentro do que já foi proposto, subsidiados
pela Lei 10.639/03. Nesse sentido, as oficinas foram recebidas com grande
expectativa, reunindo grande número de professores. Além disso, por solicitação
da prefeitura de Cabo Frio, o público das oficinas foi alargado, de forma a
receber professores de outras quatro comunidades quilombolas do município, o
que enriqueceu em muito a nossa percepção dos problemas locais e pedagógicos
enfrentados na implementação de uma educação diferenciada quilombola. Apesar
das contradições entre rural e urbano, especificidades e generalidades, vimos e
colaboramos com o esforço da direção da Escola Municipal Agrícola Nilo Batista
em valorizar e reafirmar a cultura, a memória e a história do povo negro, em
especial a das comunidades que ela atende.
Com o
desligamento do professor responsável pelo projeto da PUC-Rio e sua entrada na
UNICAMP, o projeto foi forçosamente encerrado antes da realização do terceiro
ciclo. O saldo das oficinas, entretanto, parece ter sido bom, do ponto de vista
dos professores e professoras, tendo em conta as suas avaliações finais. Além
disso, o material das oficinas foi filmado tendo em vista a produção de um
pequeno documentário de registro que pode ter utilidade em novos projetos
futuros. Assim, ainda que não tenhamos alcançado o objetivo total do projeto,
pois o terceiro ciclo não fora concluído, vimos que o processo da educação
diferenciada não se dá de maneira simples, devido ao reconhecimento tardio das
questões de etnicidade, mas que é possível dar forma à ‘educação diferenciada’
para tais comunidades no âmbito da rede pública municipal.
Referências
ARRUTI, J. M. Etnicidade. Dicionário
Crítico das Ciências Sociais dos países de fala portuguesa. 2011.
ARRUTI, J. M. A emergência dos “remanescentes”: notas para o
diálogo entre indígenas e quilombolas. In: Revista
Mana 3 (2): pp. 7-38, 1997.
ARRUTI, J. M. Quilombos. In: Raça:
Perspectivas Antropológicas. [Org. Osmundo Pinto]. ABA / Ed. Unicamp /
EDUFBA.
ARRUTI, J. M. Mocambo: Antropologia e
História do Processo de Formação Quilombola. Bauru, SP – Edusc, 2006. 370
p. (Coleção Ciências Sociais).