O Lapf foi criado em 2008 no âmbito do Departamento de Educação da PUC-Rio, tendo sido registrado no diretório do CNPq entre 2009 e 2011. Seu objetivo foi a promoção da análise dos processos de agenciamento de identidades, memórias e territórios coletivos, em sua relação com os processos de produção e transmissão do conhecimento, tanto em suas modalidades escolares quanto não escolares. A partir de 2012, porém, suas atividades regulares foram encerradas. Este espaço permanece disponível como registro desta experiência de pesquisa e como meio para que seus antigos participantes eventualmente possam continuar divulgando e promovendo o tema.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

120 de abolição - Uma liberdade sempre experimentada como precária

Os direitos negados de um povo


Especial sobre quilombola do DP Entrevista // José Maurício Arruti
Antropólogo (RJ)

Diario de Pernambuco - Partiremos de uma referência histórica: são 120 de abolição. Temos o que comemorar? Claro que sim. Na verdade, a gente não deve confundir as discussões sobre preconceito e discriminação, que são reais e existem no Brasil, com o fenômeno histórico, de enorme gravidade, que é a escravidão. Mesmo porque este é um fenômeno histórico, mas não se restringe ao passado. Nós ainda experimentamos a escravidão hoje. Existem os trabalhos no Ministério Público apontando para a existência da escravidão no país e isso é de uma gravidade imensa. É fundamental a gente não confundir as duas coisas.

DP - Eu gostaria de entender qual a relação entre a vida que os remanescentes de escravos vivem hoje e a lei que promulgou a abolição… O tema escravidão e da liberdade é um tema tão interessante para o analista quanto complexo para o cidadão. As duas noções têm um duplo registro. As duas são categorias legais e são categorias simbólicas, do imaginário popular. Enquanto categoria legal, a escravidão foi encerrada com a Lei Áurea, mas, enquanto situação social, ela continua existindo, mesmo junto a populações que ela declarou como livres. Algumas das comunidades que nós hoje denominamos remanescentes de quilombos experimentaram períodos de escravidão mais extensos do que aquele registrado na história oficial.

DP - Por quê? Eram populações situadas em lugares remotos ou que estavam sob uma relação de trabalho e de submissão para a qual elas não tinham outras alternativas. Eventualmente, também não tiveram acesso à informação da abolição. No final do século 19 nós não tínhamos os mesmos meios de comunicação que hoje. Você pode imaginar que a informação tenha demorado a chegar em alguns lugares.

Além disso, como eu dizia, há a escravidão jurídica, mas também a escravidão como fato e como símbolo. Enquanto símbolo, os sociólogos que trabalharam no interior da Amazônia e no Interior do Nordeste registraram a recorrência da expressão "no tempo da escravidão" para se falar de momentos que não coincidiam exatamente com o período da escravidão jurídica. Mas que foram períodos em que houve supressão da experiência de liberdade. Por exemplo: nos momentos em que essas populações foram impedidas de usar a sua terra, retiradas de áreas de plantação, que foram impedidas de usar as suas áreas de floresta para a extração de madeira ou borracha. Ou ainda momentos em que elas foram proibidas de realizarem seus rituais ou cerimônias lúdicas e religiosas. Vários destes momentos figuram na memória de parte das populações do interior, na sua maioria negras, mas caboclas também, como épocas de retorno da escravidão.

Isso aponta para a grande variedade de usos desta categoria, mas também para uma característica da liberdade experimentada por estes grupos. Uma liberdade sempre experimentada como precária, vulnerável. Aí mesmo perto, a história do estado de Sergipe, assim como aconteceu em outros lugares do Nordeste, documenta um processo muito interessante, que permite entender melhor do que estou falando. Em 1872 começaram a surgir os primeiros esforços para se realizar um censo nacional e a resposta da população repetiu uma atitude que já havia ocorrido em momentos anteriores, como nas campanhas pelo registro de batismo. Muitas pessoas se recusaram a responder. Eram mulatos, mestiços ou negros libertos que se recusavam a responder as perguntas com medo de serem reescravizadas. A noção de liberdade era muito precária. A liberdade não era uma conquista estabelecida e indiscutida para a população livre. A noção de liberdade para essa população não excluía o risco de voltar a ser escravo. E a noção de ser escravo, mesmo depois da abolição, implicou no sentimento das pessoas ou grupos sociais estarem em permanente fuga de uma nova escravidão.

DP - E, se projetarmos para hoje? Se a gente projeta isso para hoje, a gente vai assistir coisas surpreendentes (não para pesquisadores). Várias vezes, em vários lugares do país, temos relatos de funcionários do Incra ou do instituto estadual de terras chegando para reconhecerem as comunidades como quilombolas e as comunidades terem medo de assumir o rótulo de quilombolas porque acham que este pode ser um caminho para a reescravização. Aconteceu no sul da Bahia, em Campos no Rio de Janeiro. É tão trágico quanto interessante do ponto de vista analítico a gente perceber que essa população continua experimentando uma noção de liberdade marcada pela precariedade. Isso é fundamental para entender a importância e a força das políticas afirmativas hoje voltadas para os remanescentes de quilombos.

DP - O que é necessário para mudar esse quadro? Formalmente a sociedade valoriza a autonomia individual e a igualdade. Por isso, a existência dessa precariedade de que falamos, e a falta de meios de acesso aos recursos jurídicos e materiais, aos meios básicos de produção, devem ser rechaçadas pelo Estado brasileiro. Porque isso implica em manter populações inteiras sem autonomia e sem igualdade.

Quando a autonomia e a igualdade não podem ser defendidas ou promovidas partindo do princípio de que todos são iguais (e o fato é que a gente está numa sociedade na qual os indivíduos não são iguais porque as suas condições são diferentes), então a gente tem de se produzir políticas diferenciadas para que todos tenham acesso aos mesmos recursos. Evidentemente, as políticas afirmativas são políticas importantes neste quadro. Hoje estamos num estado democrático que está promovendo ações de valorização dessas populações que levam a mudanças na sua situação. Isso é uma conquista. Não devemos esquecer isso. Mas, aos poucos, vamos descobrindo novos obstáculos na sua execução. A gente começa a observar que, para que estas conquistas se realizem, não basta só a produção das leis como já acontece, nem a previsão de orçamentos especiais, também como já acontece. É necessário também que existam condições para que a população se aproprie dessas políticas. E essas condições ainda não existem em todos os lugares.

DP - Do que o senhor está falando especificamente? Muitas vezes, a população não sabe que existe um orçamento destinado aos quilombos que a sua prefeitura acessa. Às vezes, a própria prefeitura reconhece uma comunidade como quilombola, providencia o seu registro na Fundação Cultural Palmares, mas sem que isso tenha sido conversado com a própria população. Assim, ela acaba sem saber dos recursos que o governo anuncia enviar aos quilombolas. Outras vezes, essas comunidades são chamadas para participar de conselhos e fóruns onde elas devem ser capazes de discutir assuntos de seu interesse. Só que essa população nunca foi treinada para isso, não está socializada com os instrumentos formais de representação. Então, ela entra nos fóruns e conselhos numa situação desfavoráveis para debater essas políticas. Acaba apenas fazendo número. Enfim, nós tivemos uma conquista, mas essa conquista não é suficiente. São necessárias outras, como no plano da educação, por exemplo, para que a população possa acessar e monitorar os seus direitos e as fontes desses recursos.

DP - Eu li alguns artigos seus sobre o papel da imprensa. Se o senhor fosse jornalista, o que o senhor enfocava com relação aos quilombolas? Tanto as matérias dos jornais favoráveis quanto a dos jornais desfavoráveis enfatizam o quilombo como uma manifestação cultural. Esta é a idéia mais comum e a imprensa tem quase a função de representar o senso comum. Assim, como editor do Observatório Quilombola, que acompanha quase diariamente notícias sobre quilombos de todo o país, é possível dizer que uma parte importante da grande imprensa trata os quilombos como uma manifestação exótica, como uma manifestação do passado, ou como puro engodo, invencionice. Em lugar disso, seria fundamental que a imprensa pudesse pensar os quilombos em outros termos, como grupos que podem ter um passado, mas que também vivem no presente, e cuja vida e valor não é só cultural. As comunidades quilombolas são comunidades políticas também. Isso muda a perspectiva.

Perceba que na maioria das matérias favoráveis os quilombos são vistos a partir de uma festa ou como miseráveis indefesos. Isso é feito como se o samba de coco e outras manifestações culturais existissem no vazio, como se elas fossem expressões diretas das almas. Mas elas são mantidas por pessoas de carne e osso, que têm cada dia menos recursos para realizar essas festas. Então, essas comunidades não são unidades culturais? Elas não têm raízes? Sim, têm! Mas essas culturas, como qualquer outra, são manifestações vivas, e que estão sendo revitalizadas, também com objetivos políticos. Aí a cultura se junta com a política e com a luta.

Essas populações percebem que a sua importância hoje, para o Estado, para a mídia, para a classe média consumidora de cultura, deriva das suas manifestações lúdicas e religiosas, então elas também ganham uma função política e de sobrevivência.

Só que isso também serve às matérias negativas, interessadas em deslegitimar essas comunidades. Neste caso, os quilombos só podem ser representados como grupos de pessoas apáticas, sem ação, miseráveis. Qualquer organização política, mistura racial ou transformação cultural é sinal de engodo.

Também são recorrentes as matérias que pretendem provar a falsidade de determinadas comunidades mostrando que elas não têm raízes num quilombo histórico e que alguns dos seus moradores não estão de acordo em serem chamados de quilombolas. Ora, evidentemente, a categoria de quilombo sempre foi uma categoria de acusação. Ela nunca foi usada por estes grupos para se auto-identificarem. Fazer isso, até o início da década de 90, era pedir para ser discriminado. A categoria só passa a ter um valor positivo na medida em que o legislador incorpora isso na lei. E ele incorpora o termo na lei não por estar fazendo referência a uma categoria usada pelas comunidades, mas faz isso tendo por referência uma categoria que faz sentido para ele. Apenas agora essas comunidades estão fazendo contato com a categoria e, muitas vezes é difícil explicar que isso não significa re-escravização.

DP - Explique melhor… Fazer uma matéria destacando o fato de que as pessoas não se afirmam como quilombolas é passar por cima do largo processo, necessário para todos nós, de tomada de conhecimento das categorias de atribuição de direitos e responsabilidades que nos são impostas pelo mundo jurídico. Ninguém nasce operário, camponês, assalariado, mas estas são categorias que organizam o mundo. Cada vez mais sabemos que as pessoas não nascem nem mesmo mulheres, homens, gays, negros ou brancos, mas têm que aprender a se pensar desta forma. Porque seria ilegítimo aos quilombolas o mesmo processo de tomada de conhecimento da categoria, suas vacilações, dúvidas e depois adaptações?
Outras vezes, as matérias negativas exploram as divergências internas a estas comunidades, mostrando depoimentos de moradores que dizem que ali não tem quilombo. Ora, se toda comunidade tem conflito interno, se toda família tem conflito, isso leva à possibilidade de dizer que ali não existe uma comunidade ou uma família? Usar isso para deslegitimar as demandas do grupo organizado é má-fé, é mau jornalismo, ou má ciência. É, de novo, trabalhar com a idéia de que uma comunidade é uma coisa única, simples e primitiva, descarnada, expressão direta de um passado idealizado. Mas estas comunidade não são nada disso, elas são unidades políticas, têm divergências e estão aprendendo as linguagens jurídicas. Estão vivendo história riquíssimas de perda, conquista, aprendizado, invenção, que podem dar boas e honestas abordagens jornalísticas.

DP - O senhor acha que este é um momento de passagem, de afirmação, desse povo quilombola?É claro que é um momento especial. Eu estou chamando a atenção para o risco que a gente corre quando a gente naturaliza a categoria remanescentes de quilombos. Ela é histórica. Várias comunidades já adotaram o termo como uma auto-atribuição, na medida em que foram informadas dele, foram capacitadas com relação ao artigo constitucional e ao decreto presidencial, enfim, na medida em que já tiveram a presença da militância negra ou jurídica explicando a categoria e como ela permite o seu acesso à direitos. Mas perceba bem: eu insisto, este não é um fenômeno exclusivo dos quilombos. A rigor, não existe índio, porque índio é uma categoria jurídica. Existem os Tuka, os Pankararu, os Yanomani… Essas comunidades são grupos étnicos que têm nome próprio. É a lei do homem branco que nomeia o conjunto de todos esses grupos como índio. E essas comunidades tiveram que aprender que o correspondente para o ser pankararu era ser índio. Depois que compreenderam isso foi possível constituir um movimento indígena. É um fenômeno sociológico.
Por isso eu também concordo com a impressão de que a gente está vendo o surgimento de um movimento social novo, que é muito recente, mas muito representativo e que pode se tornar muito forte. Essa novidade e sua velocidade tem saltado aos olhos não só da imprensa e dos pesquisadores, mas também da bancada ruralista, que tem se oposto ao movimento.

DP - O senhor defende que os quilombolas sejam tratados como um segmento diferenciado no âmbito das políticas públicas? As políticas de reconhecimento de hoje têm pelo menos dois formatos. Uma política que reconhece que largas faixas da sociedade nacional estiveram distantes das políticas chamadas gerais ou universais e que busca reverter esta situação. Neste caso, são produzidas estratégias especiais que permitam que grupos historicamente marginalizados da redistribuição de recursos possam, finalmente, ter acesso a eles. Estas são políticas de reconhecimento centradas na idéia da redistribuição. Mas há as políticas de reconhecimento que trazem ao primeiro plano a produção de políticas diferenciadas para diferentes frações da população. Dois bons exemplos disso são a educação e a saúde.
A experiência indígena mostra que a simples extensão de políticas universais de saúde e educação a estes grupos não são suficientes. Como o modo de perceber a saúde, de lidar com a doença e de ministrar os remédios e outras terapias são muito diferenciados entre a medicina convencional e as formas tradicionais destes grupos, a ignorância sobre esta diferença leva ao fracasso da política. Então são necessários estudos sobre tais formas particulares, para produzir políticas adaptadas, diferenciadas, que respeitam as formas como esses grupos lidam com a saúde, com a doença e com o seu tratamento. O mesmo pode ser dito para a educação, se tivermos em mente a grande quantidade de conhecimento tradicional desses grupos e as formas particulares deles os transmitirem de uma geração a outra.
Assim, podemos falar deste segundo tipo de política de reconhecimento como pautada não tanto pela redistribuição, mas pela diferenciação.

DP - Não existe sequer uma contagem dos quilombolas. Não seria a perpetuação de um descaso com esse povo? Isso decorre de um preconceito histórico. A própria contabilização da cor do povo brasileiro é recente. Isso expressa o que chamamos de racismo institucional. Seria tapar o sol com a peneira não reconhecer isso. Mas, na medida em que próprio Estado se obriga a superar tal situação, surgem outros problemas, com os quais lidamos hoje. Mesmo que exista vontade política, existe uma série de indefinições técnicas de como se deve realizar um levantamento como este. Afinal de contas, como se contam as comunidades quilombolas? Quais as ferramentas e instrumentos, quais critérios para inclusão das comunidades na conta? Existem diversas listas oficiais e não oficiais divergentes entre si. Existe uma lista da Funasa, outra do MEC, que são diferentes da lista do Incra ou da Seppir.

DP - De dez anos para cá? O ponto de partida é a partir da constituição de 1988, mas até que isso ganhasse corpo e o movimento quilombola se organizasse, levou tempo O primeiro grande encontro foi em 1995. Depois de ganhar corpo, teve um aumento de políticas.

DP - Com relação a questão dos quilombolas de Alcântara, qual o simbolismo da conquista? Cada uma das diversas lutas quilombolas pela terra é fundamental porque abre precedentes. Definem o tipo de argumento que é considerado válido ou inválido na justiça. Isso é importante porque boa parte dos juízes julga a partir de uma concepção dicionarizada do termo quilombo. Por isso é possível ver absurdos como um procurador da república do Rio de janeiro usando como referência fundamental da sua decisão o verbete quilombos do dicionário Aurélio Buarque de Holanda, quando já existe mais de 10 anos de luta e de debates e uma larga bibliografia sobre o tema, que ele maliciosamente, insiste em desconhecer. O fato é que, seja por má fé ou por ignorância, parte da justiça continua desconhecendo esse debate e isso faz com que vitórias de grande visibilidade, como a de Alcântara, sejam fundamentais para sensibilizar o campo jurídico. Além do mérito de dar uma salvaguarda para a vida de centenas de camponeses, a decisão de Alcântara nos anima por mostrar que é possível fazer o Estado Brasileiro recuar em interesses que ele nomeava como estratégicos, em nome da tolerância, da diversidade social, dos direitos humanos. Isso vale em si mesmo e também vale em enorme e visível precedente que pode nos ajudar em outras situações, como a da Marambaia.

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