O Lapf foi criado em 2008 no âmbito do Departamento de Educação da PUC-Rio, tendo sido registrado no diretório do CNPq entre 2009 e 2011. Seu objetivo foi a promoção da análise dos processos de agenciamento de identidades, memórias e territórios coletivos, em sua relação com os processos de produção e transmissão do conhecimento, tanto em suas modalidades escolares quanto não escolares. A partir de 2012, porém, suas atividades regulares foram encerradas. Este espaço permanece disponível como registro desta experiência de pesquisa e como meio para que seus antigos participantes eventualmente possam continuar divulgando e promovendo o tema.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

‘Caminho Quilombola’ – Interpretação constitucional e reconhecimento de direitos étnicos

‘Caminho Quilombola’ – Interpretação constitucional e reconhecimento de direitos étnicos
de André Luiz Videira de Figueiredo

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PREFÁCIO
Por José Maurício Arruti



Depois dos primeiros reconhecimentos oficiais de comunidades quilombolas no estado do Rio de Janeiro, no ano de 1999, emerge aquilo que poderíamos chamar de um ‘campo quilombola’ no estado. Este campo, ainda hoje muito tímido em suas conquistas e frágil em sua organização interna, foi instituído pela expansão rizomática, lenta, desigual, tantas vezes falha e fantasiosa de informações acerca dos novos direitos a que as comunidades negras, principalmente as rurais, poderiam ter acesso por meio da sua reclassificação, de camponeses, trabalhadores rurais, posseiros, assentados ou outras, para quilombolas.

André Videira de Figueiredo foi, desde quase o primeiro momento, um companheiro de observação deste processo. As reuniões de estudo e debate sobre a situação destas comunidades, nas quais reuníamos cientistas sociais, militantes políticos e militantes do campo jurídico (desde jovens acadêmicos em formação até defensores públicos e procuradores da república) constituíram o cenário no qual desenvolvemos uma sólida parceria materializada em projetos e textos, mas, principalmente, uma rica amizade. Sua presença, como antropólogo e professor de sociologia jurídica, ocupou uma função importante na tecitura tanto da rede de atores sociais envolvidos nestes encontros, quanto nos diálogos que mantínhamos por meio deles.

Esses encontros de estudo e debates acabaram se transformando também no espaço para onde a curiosidade movia pessoas diretamente envolvidas com estas comunidades, trazendo informações sobre seus conflitos e dramas sociais, assim como levando de volta informações colhidas junto aos pesquisadores e advogados que haviam se interessado por sua situação. Em alguns casos, tais encontros acabaram por gerar assessorias jurídicas gratuitas aos casos apresentados, assim como a elaboração de relatórios preliminares.

Foi neste contexto que tivemos contato, pela primeira vez, com a situação da família do ‘seu Dito’, mais conhecida como Família Leite, que nos foi apresentada como Comunidade de Alto da Serra. Uma ‘família’ que vivia o drama de um forte racismo institucional, que lhes tornava invisíveis frente aos serviços da municipalidade e às políticas do estado, mas que, ao mesmo tempo, lhes fazia objeto permanente da delegacia local, por meio da qual eram acuados pelos pretensos proprietários das terras que ocupavam de forma pacífica há mais de 50 anos. Rapidamente ‘seu Dito’ e sua família passaram ao centro do nosso interesse e André foi tomando a frente no acompanhamento da situação.

O livro que vocês têm em mãos materializa, portanto, vários encontros e um determinado momento que eu considero crucial na formação do campo quilombola no Rio de Janeiro, ganhando diversos níveis de significação. Minha intenção aqui é apenas destacar alguns destes significados, que eu creio ganharem um valor geral do ponto de vista da ainda breve história intelectual do fenômeno quilombola.

Em primeiro lugar, O Caminho Quilombola tem o mérito de trazer para o campo de debates próprios da Sociologia um tema que tem se mantido quase exclusivamente como objeto da Antropologia. Não tenho interesse e exagerar distinções disciplinares que, principalmente diante da tradição da Ciência Social feita no Brasil, são artificiais. Mas, de fato, há uma lacuna a preencher entre o modo pelo qual a Antropologia tem tratado das comunidades quilombolas e os debates, necessariamente mais gerais e mais teóricos, pelos quais a Sociologia, em especial a Sociologia Jurídica, tem abordado o tema das Políticas de Reconhecimento. Se, de um lado, uma Antropologia cada vez mais política, tem buscado incorporar em seu vocabulário e no seu campo de análise etnográfica categorias como mediação, esfera pública, campo jurídico, muito mais dificilmente, porém, a Sociologia se mostra disposta a investir suas categorias e modelos de análise sobre um campo empírico repleto de detalhes etnográficos, categorias nativas, simbolismos religiosos etc., como o faz Figueiredo.

É justo desta perspectiva que eu percebo sua análise do conceito de “comunidade aberta de intérpretes” de Häberle, projetado sobre o contexto de Alto da Serra. Figueiredo descreve de que modo aquilo que em geral – sob o perigo iminente de incorrer em deslegitimação política – é descrito como simples “manipulação” das categorias jurídicas disponíveis, pode ser melhor compreendido e interpretado nos termos de uma dialética entre dois níveis da abertura da interpretação constitucional, correspondentes às diferentes escalas em que os mediadores-intérpretes atuariam. De um lado, aquela abertura que se opera no plano nacional e no sentido de uma generalização das categorias locais. De outro lado, aquela abertura interpretativa que se opera no plano local e em um sentido de adequação das categorias abstratas. A inversão simétrica entre estas operações hermenêuticas revela a homologia que liga os agenciamentos da lei nos dois planos discursivos em que a sociedade brasileira tem enfrentado a novidade quilombola, de forma que não é mais possível deslegitimar um destes planos quando se supõe a legitimidade do outro.

Ao observar de perto a ação destes intérpretes em Alto da Serra, o autor desenha uma tipologia tão interessante quanto útil para pensar outros processos de formação quilombola. Ele demonstra que é a partir de uma certa divisão social do trabalho político que surgem estas figuras híbridas de liderança comunitária e intérprete da lei, que atuam fundamentalmente de forma a mediar o acesso da sua comunidade étnica ao universo abstrato, distante e mesmo improvável, das possibilidades da lei. Este trabalho de mediação, que parte dos antropólogos chamaria de tradução, ao ser visto como um processo de interpretação, como proposto por Figueiredo, revela como a “tensão centro-periferia”, que caracterizaria a própria “comunidade aberta de intérpretes da Constituição”, passaria a marcar posições dentro da própria comunidade quilombola.

Isso permitiria dar lugar sociológico às diferenças de posição entre dois tipos ideais: aqueles que, participando ativamente das práticas interpretativas, assumem uma postura ativa na definição da fronteira que delimita e dos conteúdos que preenchem a idéia de uma “identidade quilombola”; e aqueles que se mantém na condição de consumidores alienados das novas categorias interpretativas postas em jogo. Se de um lado temos quilombolas que assumem a condição de “consumidores qualificados do conhecimento construído”, de outro lado existem aqueles que, na periferia do processo de interpretação coletiva que configura o próprio processo de identificação étnica, não ultrapassam a posição de simples adesão à iniciativa coletiva. Estes últimos constituem uma categoria de atores que mantém uma posição ambígua diante da etnicidade.

Outro mérito do livro é o de realizar uma das tarefas fundamentais da etnografia, qual seja, a de registrar as formas locais de organização social e sua tradução em categorias de descrição e entendimento do mundo, que nos permitem ampliar e questionar o nosso próprio repertório de categorias. Isso é feito pela inclusão da categoria local, “tomar conta”, no complexo jogo que define a relação jurídica – pensada de forma larga – entre as categorias de posse e propriedade. Com isso Figueiredo propõe uma triangulação, no lugar das dicotomias correntes entre concreto e abstrato, efetivo e formal, ilegal e legal, normalmente estabelecidas entre aqueles termos, deslocando-os dos seus registros originais. Como revela sua análise, há em Alto da Serra uma situação complexa em que temos “terras livres” sem termos terras novas, temos uma fronteira mesmo onde a propriedade formal já se apresentaria estabelecida. Isso porque a categoria “tomar conta” surge em resposta (interpretação) ao artificialismo do vínculo que um proprietário absentista gera com a terra, ao mesmo tempo em que está na base da relação concreta que uma categoria especial de posseiros vem estabelecer com esta mesma terra. De categoria complementar à de propriedade, “tomar conta” converte-se em categoria concorrente, ao gerar uma relação objetiva com a terra que, no decorrer de um longo espaço de tempo, desequilibraria o conjunto de obrigações mútuas que a categoria supõe. Como o proprietário não assume qualquer compromisso com o ocupante que toma conta das suas terras, esta relação tende a esgarçar-se.

“Na prática, explica Figueiredo, trata-se de uma categoria agenciada para explicar o processo de ocupação e produção na terra e, como veremos, para articular uma concepção de direitos adquiridos sobre ela”. O que lhe permite tomar a categoria como um dos eixos de identificação como quilombola que operam no processo de auto-atribuição em Alto da Serra: a participação política, o pertencimento familiar-comunitário e a insegurança jurídica na posse da terra, revelada pela categoria ambígua de “tomar conta”. A introdução deste terceiro termo, como um marcador positivo na definição das comunidades quilombolas, quase simétrico na sua função sociológica, à categoria de “uso comum”, dá mais um e importante passo na ponte que vamos estabelecendo entre a análise antropológica dos grupos étnicos e a interpretação honnethiana que dispõe na base das lutas sociais um conflito moral, pensado então em sua positividade de motor de um agenciamento coletivo.

Finalmente, para não corrermos o risco de estender demais um texto que deve apenas chamar atenção para algumas das qualidades do livro, vale a pena destacar como a análise de Figueiredo sobre a situação da Família Leite coloca em um outro lugar o debate sobre a relação entre política fundiária, objetivo primeiro e mais importante tanto para o movimento social quanto para seus assessores e estudiosos, e as demais políticas públicas, em geral apresentadas como uma espécie de dispositivo de dispersão estrategicamente criado pelo Estado brasileiro para desviar o esforço da mobilização pela terra. Voltando á linguagem teórica do início da tese e afastando-se de uma interpretação fundada em supostas intencionalidades, Figueiredo mostra como a entrada da comunidade de Alto da Serra no campo quilombola implica a produção de expectativas e de realidades sociais que, ainda que tendo a terra no centro, não podem ser satisfatoriamente compreendidas apenas em função da política fundiária, aqui assimilada à política redistributiva. As demais políticas desempenham como ele mostra, um papel fundamental no novo lugar moral que o reconhecimento, propriamente dito, cria para aquela comunidade historicamente submetida a um silencioso e sistemático racismo. Isso certamente torna mais complexa e cuidadosa nossa visão do fenômeno.
Estas são algumas das razões pelas quais acredito que os estudos sobre comunidades quilombolas amadurecem com a sociologia produzida no Caminho Quilombola de André Figueiredo.

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