O Lapf foi criado em 2008 no âmbito do Departamento de Educação da PUC-Rio, tendo sido registrado no diretório do CNPq entre 2009 e 2011. Seu objetivo foi a promoção da análise dos processos de agenciamento de identidades, memórias e territórios coletivos, em sua relação com os processos de produção e transmissão do conhecimento, tanto em suas modalidades escolares quanto não escolares. A partir de 2012, porém, suas atividades regulares foram encerradas. Este espaço permanece disponível como registro desta experiência de pesquisa e como meio para que seus antigos participantes eventualmente possam continuar divulgando e promovendo o tema.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

"Quilombera" - ressemantizações latinoamericanas do quilombo

Por L. Porter



O grande hit argentino na Copa é esse:“Vamos, Vamos, Argentina! Vamos, Vamos a ganar. Que esta barra, quilombera, no te deja, no te deja de alentar!!!”Mas o que é quilombera? Fucei e encontrei. Abaixo, a interessante explicação em texto feito em duas mãos: Yedda A O Caggiano Blanco(USP e UniFMU) e Ramiro C H Caggiano Blanco (Universidad Nacional de Rosario – Argentina).
(Juro! Pensei que quilombera era mais uma expressão racista dos cânticos de hinchadas castellanas, mas não é. Siga à leitura abaixo...)

A diversidade cultural na aquisição lingüística abrange aspectos de um determinado grupo e área, num determinado momento espaço-temporal que transforma a relação semântica de determinada palavra com o seu léxico.
Pensemos na palavra quilombo, por exemplo. No contexto brasileiro está diretamente associada à questão da escravatura e como nos diz o Dicionário Aurélio é um “ s.m. bras. Valhacouto de escravos fugidos” , ou ainda, entre outras definições, temos:
Quilombo: designam-se assim os redutos constituídos no Brasil Colonial pelos negros fugidos da escravidão.
O dicionário do Brasil Colonial, nos informa, que a palavra quilombo é originária banto (língua africana) kilombo e significa acampamento ou fortaleza e foi usada pelos português para denominar as povoações construídas por escravos fugidos.
E mais abrangentemente, na definição de Lopes, 1987: 15):
Na tradição popular no Brasil há muitas variações no significado da palavra quilombo, ora associado a um lugar: -quilombo era um estabelecimento singular-, ora a um povo que vive neste lugar;- as várias etnias que o compõe-, ou a manifestações populares, -festas de rua-, ou ao local de uma prática condenada pela sociedade; -lugar público onde se instala uma casa de prostitutas-, ou a um conflito: uma -grande confusão-, ou a uma relação social: -uma união-; ou ainda a um sistema econômico: - localização fronteiriça, com relevo e condições climáticas comuns na maioria dos casos
Esses significados, no Brasil, parecem ter-se reduzido a um só: a idéia de lugar. Entretanto essa mesma palavra transportada para a região do Rio de La Plata, especialmente Argentina e Uruguai, passou por uma mudança de significado de forma acentuada.
Se formos ao dicionário de língua espanhola encontraremos:
quilombo. (De or. africano). m. Arg., Bol., Chile, Par. y Ur. prostíbulo. 2. vulg. Arg., Bol., Hond., Par. y Ur. Lío, barullo, gresca, desorden. 3. Ven. Lugar apartado y de difícil acceso, andurrial.
quilombero, ra. adj. vulg. Arg. pendenciero. U. t. c. s.
quilombear. intr. coloq. Ur. Visitar quilombos (II prostíbulos).
Na designação espanhola podemos perceber uma gama formativa de léxicos enraizadas nos aspectos: casa de tolerância, prostíbulo, luxúria ou desordem. A razão disso se deve a alguns fatores, vejamos:
Comecemos pela acepção de desordem – quilombo não deixa de ser, na origem da palavra, a quebra de uma ordem associada a sociedade escravocrata. A idéia de quilombo como desordem é captada por uma sociedade que tem a ordem patriarcal estabelecida, no caso, a portuguesa, e que busca a continuidade de uma relação de dominação e, em conseqüência a idéia de quilombo como desordem, tendo em vista que desordem para o homem branco ou dominador seria tudo aquilo que lhe tirasse seu poder de conquista. Quilombo para um negro nunca seria desordem e sim espaço de representação da liberdade e possibilidade de luta contra o dominador.
Em contra partida, na Argentina, na região do Rio de La Plata, os negros tinham uma boa aceitação e condição social, sendo destinados ao trabalho urbano, gozavam da liberdade de ventre livre a partir de 1813 e em 53 são decretados homens livres, inclusive aqueles negros de outras localidades que viessem morar na região.
Enquanto que quilombo, na visão da sociedade portuguesa, prendia-se à idéia de rebelião, desordem, no Rio de la Plata associava-se à idéia não como desordem e, sim, num sentido sexual, como sinônimo de lupanar.
Quanto à origem sexual da palavra quilombo, como lugar de luxúria, ele pode estar relacionado ao imaginário de que o negro por ser negro tem mais qualidades sexuais. Esta idéia ficou mais forte na Argentina por fins do século passado, quando houve uma perda significativa desse grupo, pela febre amarela.
No imaginário erótico quilombo passou a ser lugar de lupanar, sendo diferente do sentido apresentado na língua portuguesa que nesse século XIX enfatizava a idéia de luta ou desordem.
A mudança do sentido do termo quilombo na Argentina deve-se muito as torcidas de futebol que invocam em seus cânticos o espírito de festa, ou melhor de “ quilomberas”
Vamos vamos (nome do time)
Vamos vamos a ganar,
Que esta barra quilombera
No te deja de alentar.
Sentido também compartilhado pelos adolescentes, sendo que “quilombo” é uma “festa de arromba” seja em “Bariloche un quilombo nacional /Bariloche te quiero de verdad” ou em “ “…sigamos jodiendo, sigamos creciendo /hagamos quilombo que al fin llegaremos…”
Paralelamente a palavra foi ganhando um outro sentido, o de desordem associado à resistência, à luta. Assim, durante o governo de Isabel Perón (1974-1976) o povo cantava contra o ministro López Rega (apelidado de “El Brujo”):
Suenen los pitos
Suenen los bombos
Saquen al brujo
O hacemos quilombo.
Para concluir, hoje já quase ninguém usa a palavra quilombo no sentido de prostíbulo. Quilombo espreme mais a idéia de desordem, festa ou, ultimamente, de luta, com o qual a palavra parece estar recobrando seu sentido original, aquele que tinha no tempo dos quilombos.

Fonte: http://blogdolpotter.blogspot.com/2006/06/quilombera.html

(indicação de Nilton Santos)

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